A sociedade deve exigir dos seus parlamentares que o texto substitutivo, apresentado no dia 22 de junho, não seja aprovado às pressas. É necessário tempo para analisar e melhorar o projeto sob pena de criarmos um monstrengo que fará com que nosso caótico sistema tributário seja, em poucos anos, ainda pior do que já é.
No dia 22 de junho passado, há menos de duas semanas, foi divulgado o texto substitutivo preliminar da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) nº 45/2019, de relatoria do Dep. Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), propondo a reforma da tributação do consumo.
Muito resumidamente, o projeto pretende substituir os cinco tributos incidentes sobre o consumo (ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS) por um Imposto Seletivo (para eliminação do IPI) e por dois Impostos sobre Valor Agregado (IVA): um IVA federal, que substituiria o PIS/COFINS, e um IVA subnacional, que seria cobrado no lugar do ICMS e do ISS.
Da carga tributária brasileira,estimada pelo Tesouro Nacional como correspondente a 33,71% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2022, aproximadamente 40% do todo (13,44% do PIB) seria relativo a tributos incidentes sobre o consumo (sobre bens e serviços). Como se vê, a representatividade desta tributação é descomunal.
Mesmo assim, o presidente da Câmara dos Deputados, o Dep. Arthur Lira (PP-AL) tem manifestado a vontade de submeter a reforma à votação nesta casa na primeira semana de julho, para aprovação antes do recesso parlamentar (a se iniciar em 18 de julho de 2023). O modelo de tramitação escolhido pelo Dep. Arthur Lira parece dificultar a apresentação de emendas, pois será apresentado para a apreciação direta pelo plenário da Câmara. Para piorar, o Dep. Aguinaldo Ribeiro teria sinalizado que o texto final da reforma somente será apresentado na data da votação.
Abaixo, indicamos, resumidamente, os seis principais motivos para não se aprovar o projeto revelado pelo Dep. Aguinaldo Ribeiro com o açodo pretendido pelo Dep. Arthur Lira.
1) Ausência de prazo para se avaliar e melhorar texto:
Como comentado, o texto substitutivo preliminar foi apresentado no dia 22 de junho passado, para apreciação pela Câmara dos Deputados agora, na primeira semana de julho (ou seja, em menos de 15 dias), com a notícia de que o texto final a ser efetivamente votado será divulgado apenas no dia da votação, inviabilizando qualquer análise mais cuidadosa ou aprimoramento por meio de emendas. O texto substitutivo tem 29 páginas de dispositivos complicados e técnicos. O projeto final certamente não será menor nem mais simples. Não há qualquer possibilidade de os congressistas conseguirem analisar aquilo no qual votarão na própria data de votação. Deliberarão sobre texto que nem conhecerão. Este procedimento legislativo corresponde à mais escandalosa afronta à democracia.
E que não se argumente que a reforma tributária tem sido discutida desde há muitos anos, estando madura para votação. O que se discutiu até agora não foi o texto a ser votado, que é o que realmente importa. Deve ser cuidadosamente analisado, discutido e melhorado. É ingênuo acreditar que vai se aprovar desta forma apressada na Câmara para melhorar depois, no Senado.
2) Suposta simplificação não será realmente atingida:
Todas as falas daqueles que buscam a reforma tributária convergem para a necessidade de simplificação do nosso confuso sistema. O projeto apresentado, contudo, não promoverá a propagada simplificação. A mera troca de 5 tributos por 3 outros não significa simplificar. Outras providências deverão ser tomadas para tanto. Algumas talvez tenham sido atingidas pelo texto que se propõe, mas outras não. Ademais, o texto que se propõe traz consigo muitas complexidades novas, além de um longo período de transição durante o qual os contribuintes terão que conviver com dois sistemas.
3) Excessiva delegação para Lei Complementar:
A PEC parece delegar para Lei Complementar (cujo texto não se conhece e nem se sabe se existe) muitos dos pontos mais delicados e polêmicos da reforma. Talvez esta manobra tenha sido estratégia inteligente daqueles que querem ver uma reforma tributária aprovada, para postergar as negociações mais difíceis. Mas como aprovar uma reforma tributária que nem se sabe como efetivamente será implementada?
4) Não atingimento de não cumulatividade plena:
Um dos objetivos desta reforma tributária seria proporcionar a plena não cumulatividade da tributação sobre o consumo, com a possibilidade de aproveitamento de créditos relativamente a todos os gastos incorridos pela empresa para o desenvolvimento das suas atividades. A não cumulatividade plena é essencial para que se tribute apenas o valor agregado em cada elo da cadeia produtiva.
O texto substitutivo, contudo, elimina os créditos das operações de aquisição de bens para uso e consumo pessoal, sem, contudo, definir exatamente o que seriam. Novamente, esta definição foi delegada para Lei Complementar.
Pior, a PEC permite situações nas quais o creditamento estaria condicionado à comprovação do efetivo recolhimento do IVA nas etapas anteriores, conforme regulado por Lei Complementar. Ou seja, cada empresa terá que fiscalizar o efetivo recolhimento do imposto por seus fornecedores, o que inviabiliza completamente a efetiva não cumulatividade, trazendo insegurança jurídica não existente em qualquer outro sistema decente de IVA.
Também em relação à não cumulatividade plena, os contribuintes deveriam ter o direito de receber de volta os créditos acumulados de maneira célere. O texto substitutivo, contudo, delega essa definição, inclusive quanto ao prazo máximo para devolução, para Lei Complementar… isto é, aprova-se uma reforma tributária constitucional sem saber como e quando os créditos acumulados serão devolvidos, o que igualmente poderá comprometer o atingimento de uma efetiva não cumulatividade.
5) Calote de Créditos Acumulados:
Quando o IVA subnacional passar a ser cobrado em sua plenitude, o ICMS terá sido substituído. Os créditos de ICMS acumulados somente poderão ser aproveitados depois de homologados pelos Estados conforme regulamentará a tal da Lei Complementar. O prazo mínimo de aproveitamento será de 20 anos, corrigindo-se o saldo pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E). Curiosamente, não se adotou a taxa Selic, usada na atualização de tantos tributos… a verdade é que o prazo de 20 anos de aproveitamento, com créditos corrigidos pelo IPCA-E, cheira a calote.
6) Festival de Exceçõe:
Por fim, o texto substitutivo surpreendeu por ter trazido mais de uma dúzia de exceções ao sistema, seja na forma de não cobranças com garantia de creditamento presumido, ou ainda cargas reduzidas à metade. Não vou fazer qualquer juízo de valor quanto às inúmeras exceções admitidas pelo texto. Elas certamente terão seus motivos para terem sido consideradas, com maiores ou menores méritos. Mas uma lista tão ampla de exceções provocará os seguintes efeitos:
a) todos tentarão se enquadrar nas exceções, gerando mais planejamento tributário e contenciosos (decorrentes de dúvidas sobre quem e em quais circunstâncias os contribuintes podem se enquadrar nas exceções);
b) muitos setores não contemplados negociarão a sua inclusão, tanto durante o trâmite da PEC nº 45/2019 como nos próximos anos. A lista de mais de uma dúzia de exceções certamente passará a ser de algumas dezenas em poucas décadas;
c) não é segredo que as exceções farão com que a alíquota combinada dos IVAs, anteriormente projetada em mais de 25%, terá que ser substancialmente aumentada para que se atinja a arrecadação pretendida. É possível que tenhamos o IVA mais caro do mundo. Essas alíquotas projetadas, já altas, terão que ser ainda maiores. E fica então a dúvida: quando se tiver um IVA combinado de 35% ou mais, quais serão os incentivos para aumento da sonegação…? Quanto maior o tributo, maior a vontade de não o recolher. Isto irá aumentar substancialmente o volume da economia à margem da formalidade…
Ninguém nega que o nosso sistema tributário é caótico e deve ser reformado. Os motivos brevemente descritos acima, contudo, demonstram que a maneira que a reforma tributária tem sido conduzida não apenas não permitirá o atingimento pleno dos objetivos alegados como também poderá nos colocar, em alguns anos, em lugar similar ou pior do que aquele no qual nos encontramos hoje.
Tenho dito que o projeto de reforma apresentado corre o risco de jogar fora a água suja da banheira junto com o bebê. O projeto tem alguns pontos positivos. Uma certa melhora no atingimento da não cumulatividade. A esperança de que os contribuintes não sofra tanto com cobranças tributárias duplicadas em função de conflitos federativos. A incidência dos tributos “por dentro” e no destino, o que tende a mitigar substancialmente a guerra fiscal.
Contudo, os pontos negativos abundam. Melhor seria atingir os objetivos pretendidos de maneira mais pontual e cirúrgica, sem os tantos outros efeitos colaterais.
Que se repense o PIS/COFINS de maneira racional. Que se transfira o ICMS para o destino. Que os tributos passem a ser calculados por fora, em pontual alteração constitucional. Que se efetivamente garanta uma não cumulatividade plena nos tributos atualmente existentes. Que se faça o IPI ser transformado em um Imposto Seletivo. Que o pacto federativo seja repensado para tributar bens imateriais e serviços de maneira equilibrada. Que os contribuintes tenham a garantia constitucional de que, em havendo qualquer conflito de competência entre entes da federação, haverá procedimento adequado para que se entregue o dinheiro administrativamente ou judicialmente, fazendo-se os entes federados resolverem entre si quem ficará com o dinheiro (sem que o contribuinte sofra com tributações incertas e duplicadas).
Enfim, que não se aprove uma reforma tributária somente para se deixar, por puro ego ou teimosia, o legado de ter aprovado uma reforma tributária. Fazer reforma por fazer reforma não resolverá nossos problemas magicamente. Muito pelo contrário, poderá criar novos e piores problemas, deixando o triste legado de se ter perdido a oportunidade de aprovar proposta que realmente melhore nosso sistema tributário.
Ricardo Lima / Fonte: Ana Carolina Monguilod – Valor Investe.