Além de ser o berço de grandes craques no cenário mundial, o futebol brasileiro também é conhecido por uma vasta gama de jogadores folclóricos. Afinal de contas, é impossível não se recordar do volante Amaral, que saiu de uma vida como funcionário em uma funerária para se aventurar no futebol, e, com algumas dezenas de causos ao longo de sua trajetória, vestiu a camisa de clubes como Palmeiras, Vasco, além de representar a seleção brasileira.
Ou até mesmo o Vampeta, “uma mistura de vampiro com capeta”, segundo o mesmo se definiu, que foi campeão da Copa do Mundo de 2002 e não pensou duas vezes em dar uma sequência de cambalhotas na rampa do Palácio do Planalto, quando a seleção foi recebida pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Tudo isso sem contar personagens como Renato Gaúcho, Garrincha, Ronaldo, Romário, Ronaldinho Gaúcho…
Entretanto, entre todas essas figuraças citadas, nenhuma roubou tanto a cena quanto Carlos Henrique Kaiser, que rodou por grandes clubes do Brasil e do exterior sem sequer ter disputado partidas oficiais. É impressionante, mas é real! Tal feito lhe rendeu a alcunha justíssima de Forrest Gump brasileiro.
O início da ‘farsa’:
Carlos Henrique Raposo ficou conhecido como Carlos Kaiser, segundo ele, pela semelhança com o notável alemão Franz Beckenbauer. Nasceu em Porto Alegre, no dia 2 de julho de 1963. Kaiser cresceu no sul, mas se mudou para o Rio de Janeiro muito jovem. Apelidado de Kaiser desde a infância, o gaúcho começou a jogar futebol em clubes por influência familiar.
Aos dez anos já treinava na base do Botafogo e era pressionado a continuar jogando, porque a ajuda de custo era importante na renda da casa. Ninguém perguntou se ele queria jogar.
E Kaiser na verdade não queria, mas foi ficando. A bola nunca foi sua melhor amiga, como o mesmo já confessou. No entanto, ele seguiu fingindo que jogava. Se profissionalizando. E essa ‘farsa’ durou por incríveis 26 anos…
Boa praça, o famoso ‘171’ acumulou vítimas:
Ao decorrer de todo esse tempo de trajetória “nos gramados”, Kaiser ludibriou diversos clubes. Botafogo, Flamengo, Puebla, do México, El Paso Sixshooters, dos Estados Unidos, Bangu, Ajaccio, da França, Fluminense, Vasco da Gama, Louletano, de Portugal, e América do Rio.
A estratégia do suposto atacante para enganar dirigentes e treinadores era elaborada. Desde cedo, Kaiser sempre foi muito bem relacionado. E fazia amizade com facilidade com jogadores importantes do futebol brasileiro. A lista de amigos era grande… Carlos Alberto Torres, Rocha, Moíses, Tato, Renato Gaúcho, Ricardo Rocha, Romário, Edmundo, Gaúcho, Branco, Maurício… apenas para citar alguns nomes.
Em uma época em que os meios de comunicação ainda não eram tão desenvolvidos, em que não existia Internet, TV por assinatura transmitindo ao vivo jogos de todo o mundo ou empresários circulando pelos corredores dos clubes com DVDs editados de dezenas de jogadores, Kaiser se aproveitava da falta de informação. Sempre que algum de seus amigos famosos era contratado por um clube, ele era levado como contrapeso para fazer parte do elenco.
As invenções e ‘causos’ de Kaiser:
Com uma forma física de dar inveja a muitos jogadores profissionais, sua fraude consistia em assinar um contrato curto e declarar que ele não estava em condições de jogo, de modo que passaria as primeiras semanas apenas com treinamento físico onde pudesse brilhar.
Quando ele tinha que treinar com outros jogadores, ele fingia lesão muscular, e até combinava com outro jogador para lhe dar uma pancada. A tecnologia na época dificultou a detecção da fraude.
Outra parte da farsa era fazer amizade com jornalistas para que eles escrevessem histórias fictícias sobre ele, deixando-o, assim, sempre em evidência. Em um artigo de jornal, foi relatado que ele teve um grande momento no Puebla, e que por isso ele foi convidado para se tornar um cidadão mexicano para jogar pela seleção.
Ele também usava telefones móveis de brinquedo, caros e incomuns na época, para criar conversas falsas em línguas estrangeiras ou rejeitar ofertas de transferência inexistentes para criar uma imagem de si mesmo como um jogador valioso.
Entre seus supostos feitos notáveis, Kaiser alega ter sido campeão Mundial Interclubes pelo Independiente em 1984, fato não confirmado pela diretoria do clube argentino. O Independiente alegou que havia um jogador com o mesmo nome, porém tratava-se do lateral esquerdo Carlos Enrique, nascido no mesmo ano, que jogou também a Copa América de 1991 pela Seleção da Argentina.
O boleiro encerrou sua carreira aos 39 anos, quando atuava pelo Ajaccio, clube da segunda divisão francesa, no qual permaneceu por alguns anos. Nessa última passagem, confessou ter atuado de verdade, sem enrolação, mas se diverte ao dizer que nunca jogou mais do que 20 minutos em uma única partida.
A história do enganador foi parar na tela dos cinemas:
Mesmo após este relato, pouca gente deve conhecer a carreira de Carlos Henrique Cardoso, mas sua vida foi parar na tela do cinema e recebeu ótimas críticas desde sua primeira exibição, no Festival de Tribeca. E o título do documentário já explica o motivo pelo qual um jogador com carreira de mais de 25 anos seja pouco conhecido do público.
O filme “Kaiser: The Greatest Footballer Never to Play Football”, do português “O maior jogador que nunca jogou futebol”, conta a carreira do homem que figurou elencos de gigantes do futebol sem ao menos ter algum tipo de intimidade com a redonda.
A obra, dirigida pelo britânico Louis Myles, tenta explicar como um homem que nunca foi muito habilidoso acabou sobrevivendo tanto tempo dentro do mundo do futebol, tendo como colegas de time alguns dos maiores ídolos do esporte brasileiro, como Carlos Alberto Torres, Renato Gaúcho, Ricardo Rocha, Romário, entre outros.
Ricardo Lima / Fonte: Ryann Gomes – “O GOL”.